Em julho de 2022, a Securities and Exchange Commission dos EUA (SEC) iniciou uma investigação contra a maior exchange de criptoativos americana, Coinbase, alegando que estaria permitindo a negociação de valores mobiliários aos seus usuários sem a devida permissão da autarquia. Nesse sentido, o método de classificação de tokens como valor mobiliário utilizado pela SEC é um debate antigo e controverso no mercado, já que a tentativa de adaptar uma jurisprudência de 1946 (“Howey Test“) a um mercado de pouco mais de uma década de existência explicita a necessidade de definições que sejam coesas e harmônicas. Diante disso, o Projeto de Lei americano Lummis-Gillibrand Responsible Financial Innovation Act busca suprir tal necessidade.
O Projeto de Lei bipartidário americano apresenta uma arquitetura regulatória robusta para a indústria de criptoativos, de forma a criar definições claras sobre ativos digitais, contratos inteligentes, stablecoins e DAO’s, com o objetivo de incentivar a inovação responsável, transparência no mercado e principalmente a proteção ao consumidor. Segundo a senadora Kirsten Gillibrand, “[a]Lei bipartidária de Inovação Financeira Responsável é um projeto de lei histórico que estabelecerá uma estrutura regulatória que estimula a inovação, desenvolve padrões claros, define limites jurisdicionais apropriados e protege os consumidores. É importante ressaltar que a estrutura Lummis-Gillibrand fornecerá clareza ao setor e aos reguladores, além de manter a flexibilidade para levar em conta a evolução contínua do mercado de ativos digitais.“
A principal novidade que traz a Lummis-Gillibrand Responsible Financial Innovation Act é um modelo de padronização de características que estabelece quais ativos digitais devem ser compreendidos como valores mobiliários e quais seriam commodities, de forma a definir qual entidade seria responsável pela fiscalização/regulação: SEC ou CFTC (Commodities Future Trading Commission).
Diante desse cenário, como na atualidade grande parte dos ativos digitais poderiam ser enquadrados como valor mobiliário pelo Howey Test e, portanto, havendo a necessidade de se adequarem às normas rigorosamente burocráticas, o Projeto de Lei cria uma nova classe de ativos, chamado de “ancillary assets“, os quais são ofertados no mercado como um contrato de investimento coletivo, mas não necessariamente considerados valores mobiliários. Os tokens classificados como ancillary assets basicamente são ativos digitais que não são totalmente descentralizados, visto que se beneficiam de esforços de terceiros para que haja geração de valor, mas não são compreendidos como valores mobiliários pois não constituem títulos de dívidas ou ações e/ou não garantem direitos a participação de lucros, preferências de liquidação ou outros direitos financeiros. Apesar de o Projeto de Lei estabelecer que esses ativos sejam obrigados a fornecer informações à SEC duas vezes por ano, eles seriam considerados commodities e consequentemente fiscalizados pela CFTC. Bitcoin e Ethereum são exemplos de ativos digitais considerados como “ancillary assets“.
Além de compreender que a maioria dos ativos digitais se assemelham mais a commodities do que a valores mobiliários, o que acarreta na exclusividade regulatória da CFTC em relação a todos os ativos digitais que não sejam considerados valores mobiliários, o Projeto de Lei estabelece normas para emissores de stablecoins, tema que se tornou destaque entre os reguladores após o colapso da stablecoin algorítmica TerraUSD, responsável por emitir tokens que deveriam valer 18 (dezoito) bilhões de dólares, mas não foram totalmente lastreados ou garantidos com ativos líquidos ou equivalentes. Nesse sentido, o Projeto de Lei exige que emissoras de stablecoins tenham 100% de suas reservas em ativos líquidos de qualidade e que sejam proporcionais àoferta total dos tokens, divulguem detalhadamente o balanço patrimonial, sejam seus tokens pareados incontestavelmente ao dólar americano, sejam fiscalizados por auditores externos, dentre outros. Outro ponto de destaque é a criação de um comitê consultivo para desenvolver debates orientadores, capacitar agências reguladoras e educar legisladores sobre o avanço tecnológico da indústria e seus respectivos impactos. A Lummis-Gillibrand também promove a criação de um “Sandbox”, um ambiente controlado onde reguladores colaboram com projetos inovadores para permitirem que sejam introduzidos produtos ao mercado de forma restrita, possibilitando que os reguladores compreendam os impactos que esses produtos possam causar no ecossistema de criptoativos.
Ademais, questões pertinentes acerca de organizações autônomas descentralizadas (DAO’s) são esclarecidas, como a intitulação de DAO’s como entidades corporativas e, portanto, estão sujeitas às normas tributárias. Nesse sentido, o Projeto de Lei exige que DAO’s sejam devidamente incorporadas de acordo com as leis de uma jurisdição e estruturadas como sociedade anônimas, limitadas ou até como fundações. Desse modo, à medida que os ativos digitais estão caminhando para ser adotados globalmente, é importante facilitar a sua utilização na vida cotidiana das pessoas. Em vista disso, o Projeto de Lei fornecerá uma isenção fiscal para ganhos de capital que não ultrapassem 200 (duzentos) dólares em um pagamento em ativos digitais por bens e serviços, incentivando o uso de criptoativos como meio de troca. Diante desse cenário, o Projeto de Lei declara que os mineradores e validadores de criptoativos não devem ser vistos como corretores e que os ativos digitais obtidos das atividades de mineração e validação não devem ser tratados como receita até que sejam convertidos em moeda fiduciária.
É evidente, portanto, que o Lummis-Gillibrand Responsible Financial Innovation Act pode ser considerado um importante marco regulatório no ecossistema de criptoativos, inclusive já sendo conceituado por muitos como o exoesqueleto regulatório global dessa indústria trilionária. Nessa perspectiva, independente da provável aprovação desse inovador Projeto de Lei, muitas informações e definições podem ser recicladas e moldadas, contribuindo para o que talvez seja a principal destrava de valor para esse mercado atingir bilhões de pessoas ao redor do mundo: regulamentação clara e eficiente.
A atuação do Bichara e Motta Advogados nas áreas que envolvem criptoativos já é uma realidade.