Warning: Attempt to read property "ID" on null in /home/storage2/4/31/3f/bicharaemotta/public_html/wp-content/themes/bicharamotta/single.php on line 5

A Vedação da Vinculação da Matrícula Imobiliária a Tokens: Perspectivas e Implicações Jurídicas

Pedro Heitor[1]

Raphael Cvaigman[2]

Nos últimos dias, o ecossistema da tokenização imobiliária do Estado de Santa Catarina foi surpreendido por um duro revés. A Corregedoria-Geral do Foro Extrajudicial do Tribunal de Justiça de SC acolheu proposta apresentada pelo Registro de Imóveis do Brasil – Seção Santa Catarina (RIB-SC) e incluiu, por meio da Circular nº 410/2025, acompanhada do Provimento nº 43, dispositivo expresso no Código de Normas do Foro Extrajudicial vedando qualquer anotação, averbação ou registro que permita a vinculação da matrícula imobiliária a tokens transacionados em redes blockchain.

Diante da alteração normativa supramencionada, passou a constar no §2º do artigo 685[3] de forma expressa e categórica a proibição à integração entre o sistema registral e soluções de tokenização, ao menos enquanto inexistir disciplina legislativa federal ou regulação expedida pela Corregedoria Nacional de Justiça.

A inserção dessa norma foi justificada por uma série de fundamentos jurídicos que demandam atenção especial. O presente artigo tem por finalidade expor tais fundamentos e confrontá-los com os argumentos em sentido contrário, de modo a investigar se a vinculação de tokens à matrícula imobiliária mostra-se, de fato, incompatível com os princípios e valores do ordenamento jurídico brasileiro e quais são os limites normativos que se impõem a tais inovações.

Para compreender adequadamente a controvérsia, é necessário, de início, delinear em que consiste o processo de tokenização imobiliária. Trata-se de operação pela qual um determinado imóvel — ou, mais frequentemente, frações ideais de sua titularidade — é economicamente representado por tokens baseados em redes blockchain. Esses tokens, em regra, são ofertados a investidores por uma sociedade ou veículo específico que figura como o titular do bem perante o Cartório de Registro Geral de Imóveis competente. Em termos práticos, os adquirentes não passam a ostentar direitos reais sobre o imóvel, mas sim direitos de natureza obrigacional em face da entidade emissora responsável pela tokenização, a quem a titularidade do bem permanece vinculada.

É justamente nesse ponto que se revelam os primeiros e mais relevantes obstáculos: o sistema jurídico, em especial o Código Civil e a Lei de Registros Públicos, condiciona a transmissão da propriedade ao registro do título translativo na matrícula do imóvel, não admitindo, por consequência, a transferência da propriedade por meio de tokens.

Dessa forma, a despeito do apelo da tokenização como instrumento de ampliação de liquidez, democratização do acesso a investimentos e incremento da eficiência operacional, é certo que a aquisição de tais tokens não implica a transferência da propriedade imobiliária. A distinção entre a esfera dos direitos reais e a dos direitos obrigacionais revela-se, nesse contexto, absolutamente central: de um lado, discute-se se a estruturação desses ativos configuraria ato ilícito, por afrontar o disposto no art. 236 da Constituição Federal, no art. 1.245 do Código Civil e no art. 221 da Lei de Registros Públicos; de outro, admite-se que possam constituir apenas veículos de liquidez e eficiência econômica, circunscritos a relações obrigacionais estabelecidas entre o investidor e a sociedade emissora, sendo a tentativa de vinculá-los à matrícula imobiliária uma forma de expressão da expectativa legítima dos investidores quanto ao adimplemento da relação obrigacional.

Ao analisar os argumentos jurídicos que embasam a vedação, percebe-se que a motivação da Corregedoria-Geral repousa, sobretudo, na defesa dos pilares do sistema registral — legalidade, continuidade, especialidade e publicidade — e no temor de que a proliferação de modelos privados de tokenização venha a simular ou substituir o papel da matrícula. Sustenta-se que a vinculação direta de tokens à matrícula induziria investidores a acreditar que a mera aquisição do token lhes confere a titularidade registral do bem, quando, em verdade, o ordenamento jurídico, pela dicção expressa do art. 1.245 do Código Civil, só reconhece a transmissão do direito de propriedade mediante registro do título translativo na matrícula.

Sob outro ponto de vista, há argumentos no sentido de que é preciso distinguir os modelos em que os tokens são estruturados como substitutos da matrícula — situação que afrontaria o art. 236 da Constituição — e aquelas em que são arquitetados de modo transparente como objeto de uma relação jurídica obrigacional, nos quais o investidor tem ciência de que seus direitos recaem sobre a sociedade emissora e não sobre o imóvel em si. Nesta última hipótese, ainda que subsistam riscos inerentes ao exercício da atividade econômica pela sociedade emissora — como eventual penhora do bem em razão de dívidas contraídas — defende-se que a estrutura não viola a essência do sistema público, formal e fiscalizado que caracteriza o regime registral.

Nesse contexto, argumenta-se vinculação da matrícula imobiliária a tokens, quando concebidos de forma transparente como instrumentos obrigacionais, não teria por finalidade simular a transferência da propriedade, mas tão somente materializar a expectativa legítima do investidor de poder confiar, de maneira justa e razoável, no cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade emissora. Tal mecanismo poderia reforçar a confiança contratual, conferindo ao investidor um elemento adicional de segurança. Ademais, a vinculação poderia desempenhar função probatória, permitindo ao investidor demonstrar, em eventual demanda judicial, que a aquisição do token estabeleceu um vínculo econômico com determinado imóvel. Ainda que não se confunda com a titularidade registral, poderia servir como garantia de que a sociedade emissora se comprometeu a transmitir ao investidor os direitos correspondentes aos benefícios econômicos decorrentes da propriedade.

Em contrapartida, também se ressalta a necessidade de evitar que tais tokens sejam promovidos como equivalentes ao registro imobiliário. Nesse caso, configurariam fraude à ordem jurídica, ensejando responsabilização de seus promotores. A questão controvertida, portanto, é se a vedação absoluta seria a medida mais adequada ou se caberia uma diferenciação entre práticas fraudulentas e práticas idôneas e transparentes.

Assim, enquanto uma corrente entende que a imposição de uma proibição ampla assegura a proteção da fé pública registral e evita riscos de confusão no mercado, outra sustenta que tal proibição pode restringir indevidamente iniciativas tecnológicas legítimas, inviabilizando o desenvolvimento de modelos de tokenização que, se adequadamente regulados, poderiam contribuir para a modernização do sistema registral.

A partir desse cenário, intensifica-se, mais do que nunca, a discussão sobre o papel do legislador federal: caberia exclusivamente a ele instituir um regime jurídico específico que discipline a evolução dos mecanismos de transmissão de direitos reais à luz de tecnologias já presentes na realidade social, como os contratos inteligentes executados em redes blockchain, de modo a compatibilizá-los com os princípios estruturantes do Direito Registral, ou seria possível admitir que os tokens imobiliários, concebidos em sua moldura obrigacional, configuram legítimas inovações da iniciativa privada, cuja tutela jurídica deve ser assegurada sem necessidade de intervenção legislativa?

A Bichara e Motta Advogados segue acompanhando de perto a evolução da tokenização de ativos, prestando assessoria jurídica estratégica para auxiliar os players do mercado a navegarem pelo dinâmico ambiente jurídico. 

[1] Pedro Heitor é estudante do último período de Direito na PUC-RJ e atua, desde 2022, nas áreas de Cryptolaw e Gambling Law no Bichara & Motta Advogados. Como analista, pesquisador e entusiasta, dedica-se às dinâmicas jurídicas que envolvem a regulamentação dos criptoativos, das finanças descentralizadas (DeFi), das apostas e dos jogos. É autor de diversos artigos nessas áreas e sua formação acadêmica é enriquecida por cursos em DeFi e Tokens Não Fungíveis (NFTs) na Universidade de Nicosia (Chipre). Além disso, fundou a comunidade jurídica “pedroheitor.eth”, voltada à promoção de debates e à disseminação de conhecimento sobre a interseção entre tecnologia, economia e Direito.

[2] Raphael é advogado formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em 2024, com especialização em direito empresarial, atuando nas áreas de Direito Societário, Contratos e Regulatório de criptoativos e apostas do Bichara e Motta Advogados. Possui experiência em contratos, estruturação societária, litígios societários e regulatório de mercado de capitais (CVM), criptoativos e apostas.

[3]  Art. 685, 2º, Código de Normas do Foro Extrajudicial – “É vedado ao oficial realizar qualquer anotação, averbação ou registro que vincule a matrícula imobiliária a tokens digitais, representações em blockchain ou qualquer outro instrumento extrarregistral, com ou sem pretensão de representar a titularidade do domínio.”