O Rumo da Tokenização Imobiliária no Brasil: Repercussões da Resolução COFECI nº 1.551/2025.

Pedro Heitor

Raphael Cvaigman

 

O mercado imobiliário brasileiro encontra-se em um ponto de inflexão diante da expansão do fenômeno da tokenização, tecnologia com capacidade de proporcionar uma profunda modernização na forma como direitos sobre imóveis são representados, negociados e transferidos.

No entanto, a despeito das oportunidades trazidas pela tokenização, é certo que não são poucos os obstáculos que precisam ser superados para liberar todo o seu potencial transformador, cuja origem reside na rígida disciplina jurídica atribuída aos bens imóveis no Brasil, plasmada por um contexto histórico, social e político pouco flexível às inovações tecnológicas. Com efeito, o art. 1.245 do Código Civil[1], ao exigir forma solene para a transferência da propriedade, somado à própria lógica do sistema registral, impõe barreiras estruturais que limitam soluções baseadas em tokenização dos direitos reais inerentes a imóveis.

Em resposta a tais desafios, o Conselho Federal de Corretores de Imóveis (COFECI), com uma dose de audácia e pioneirismo, editou a Resolução nº 1.551/2025 (“Resolução”), propondo um regime regulatório para a tokenização imobiliária, disciplinando de forma detalhada a emissão, a negociação e a gestão dos Tokens Imobiliários Digitais (TIDs) — tokens não fungíveis (NFTs) que representam Direitos Imobiliários Tokenizados (DITs) vinculados a imóveis.

O presente artigo tem por finalidade, pois, oferecer um “voo panorâmico” sobre os principais pontos da Resolução, bem como apresentar as discussões inflamadas a partir da Resolução, com o objetivo de instigar o leitor a refletir sobre os rumos para os quais a tokenização imobiliária parece se encaminhar.

Como ponto de partida, é importante compreender que a Resolução instituiu duas figuras jurídicas, as quais se inserem no seio da regulamentação: as Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais (PITDs) e os Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária (ACGIs). As PITDs são definidas como pessoas jurídicas credenciadas pelo COFECI, incumbidas de disponibilizar e operar o ambiente tecnológico destinado à gestão e à execução de Transações Imobiliárias Digitais envolvendo TIDs. Em termos práticos, funcionam como um “marketplace”, no qual emissores, investidores e demais usuários se conectam para realizar a emissão, negociação e liquidação de ativos imobiliários tokenizados, devendo observar, para fins de obtenção do credenciamento definitivo, requisitos centrais relativos à comprovação de capacidade técnica, operacional e econômico-financeira, estrutura de governança clara, adoção de políticas de segurança da informação, proteção de dados (LGPD), prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, além de plano de negócios detalhado.

Já os ACGIs são entidades igualmente credenciadas pelo COFECI, encarregadas de assegurar a correspondência entre os TIDs negociados e os direitos reais ou obrigacionais vinculados ao imóvel subjacente. Para tanto, devem instituir segregação patrimonial e operacional, implementar governança independente e adotar controles internos robustos, de modo a garantir a integridade e a proteção dos ativos sob sua responsabilidade. Essas entidades, podem, inclusive, deter a titularidade registral do bem ou constituir garantia real ou fiduciária sobre este, sempre em benefício dos titulares dos TIDs. Tal figura se assemelha à função de de um “agente fiduciário” dos direitos tokenizados, visando conferir segurança jurídica ao sistema e permitindo que os usuários tenham confiança na exigibilidade dos DITs ali representados.

Verifica-se, nesse contexto, que a Resolução procura atribuir a esses dois atores o ônus regulatório necessário para assegurar segurança, transparência e confiança aos adquirentes dos TIDs. Com isso, erige-se um verdadeiro microssistema destinado ao registro e à transferência dos direitos inerentes aos imóveis, o qual se aproveita da programabilidade, a eficiência e a celeridade próprias dos contratos inteligentes executados em redes blockchain para alcançar os fins econômicos visados.

No que se refere ao processo de tokenização especificamente, a Resolução estabelece que a representação digital é o elo jurídico que conecta o TID aos DITs. Em termos práticos, isso significa que a titularidade do TID confere ao seu detentor a posição jurídica necessária para exercer os direitos vinculados, que as transações envolvendo TIDs produzem efeitos jurídicos imediatos sobre os DITs e que os registros feitos na blockchain se refletem diretamente na situação jurídica desses direitos. Nessa linha, poderiam ser tokenizados direitos reais (plenos ou limitados), direitos reais sobre coisa alheia (superfície, usufruto, uso, habitação, laje), direitos reais de garantia vinculados à estrutura em benefício dos titulares, e direitos obrigacionais imobiliários (promessa de compra e venda, participação em empreendimentos, multipropriedade, unidades em incorporação), além de outros direitos compatíveis com a estrutura.

Diante dessa previsão de caráter disruptivo, pode-se afirmar que a edição da Resolução provocou reações de duas espécies no mercado. De um lado, houve quem aplaudisse a iniciativa, por representar o primeiro esforço institucional de estabelecimento de um regime regulatório específico para a tokenização imobiliária no Brasil, uma vez que permitiria a circulação rápida e automatizada de direitos (inclusive reais), proporcionando maior dinamismo e liquidez ao mercado imobiliário.

De outro, não faltaram críticas — sobretudo de juristas — que ressaltam a obrigatoriedade legal de registro do título no Cartório de Registro de Imóveis competente para fins de constituição e transmissão de direitos reais, requisito indispensável para a produção de efeitos erga omnes e para a oponibilidade perante terceiros. Argumenta-se, ainda, que a Resolução teria extrapolado a competência normativa do COFECI, pois (i) teria invadido a competência constitucional e legal dos Registros Públicos (art. 236 c/c inc. I do art. 22 da CF/1988 e Lei nº 8.935/1994) ao instituir, ainda que de forma indireta, um subsistema paralelo ao registro imobiliário, e (ii) teria avançado sobre a competência privativa da União para legislar sobre as transações e negociações de ativos e direitos entre particulares, exorbitado os limites legais que lhe foram atribuídos —, restrita à disciplina e fiscalização do exercício da profissão de corretor de imóveis em âmbito nacional — relação esta que, por sua natureza, pressupõe a participação de adquirente, transmitente e corretor, sem, contudo, conferir a este último qualquer forma de detenção ou titularidade sobre o bem intermediado.

À luz desses obstáculos jurídicos, há quem sustente que a tokenização de direitos reais sobre imóveis deve resultar de um processo evolutivo do próprio sistema registral, de modo a permitir que a transmissão do direito de propriedade ocorra de forma concomitante à transferência dos tokens, formando uma unidade indissociável, e, assim, atribuindo-lhes a segurança jurídica tradicionalmente confiada ao sistema notarial. De outra parte, alguns autores defendem que os tokens imobiliários deveriam ser qualificados como ativos financeiros, assemelhando-se às cotas de um fundo de investimento imobiliário. Em comparação com outras jurisdições, observa-se que, nos EUA, não se tokeniza a propriedade per se, mas tão somente as quotas de um veículo societário — usualmente um SPV (Special Purpose Vehicle) que adquire o imóvel gerador dos frutos econômicos a serem distribuídos aos detentores das quotas tokenizadas, os quais, por vez, não possuem direitos reais sobre o bem.

De todo modo, a Resolução inaugura uma importante discussão sobre o rumo da tokenização imobiliária no País, ao evidenciar esses dois possíveis percursos. Ainda assim, sua adesão dependerá da forma como o mercado se adaptará às exigências normativas e de como será construída, na prática, a interação entre o ambiente on-chain e o sistema registral.

Caberá, portanto, aos operadores do direito, às plataformas e aos reguladores acompanhar, avaliar e contribuir para o desenvolvimento de uma estrutura de tokenização imobiliária que harmonize a eficiência almejada com a segurança jurídica indispensável às transações imobiliárias.

 Bichara E Motta Advogados segue acompanhando de perto a evolução da tokenização de ativos, prestando assessoria jurídica estratégica para auxiliar os players do mercado a navegarem pelo dinâmico ambiente jurídico.

[1] Art. 1.245, CC. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.