Udo Seckelmann[1] e Pedro Heitor[2]
A discussão acerca da classificação de criptoativos como valores mobiliários talvez seja o principal debate regulatório na indústria desde o surgimento dos primeiros contratos inteligentes em 2015. Nos Estados Unidos, a Securities and Exchange Commission(SEC) vem travando uma verdadeira guerra com os participantes do mercado, evidenciando certo desconhecimento técnico e social sobre o tema, buscando regulamentar por imposição e inviabilizando conversas produtivas com a indústria em geral. Como resultado dessa postura, florescem incertezas aos empreendedores que buscam se desenvolver no local e, consequentemente, fuga de capital e distanciamento de tecnologia e inovação dos Estados Unidos, tal como bem fundamentado pelo Senador Pat Tommey, quando disse ao presidente da SEC que a autarquia “falhou em promover clareza, falhou em prover a definição de quando um empreendimento em comum pode ser suficiente para qualificar um token como valor mobiliário ou não“.
Nesse contexto, o Brasil emerge como um país potencialmente “crypto-friendly“, em especial por conta da postura comunicativa e colaborativa dos seus órgãos reguladores, como foi mostrado mais uma vez pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) através do Parecer de Orientação nº 40, que aborda o entendimento da autarquia em relação às normas aplicáveis aos criptoativos que forem considerados valores mobiliários, bem como o seu limite jurisdicional e o modus operandi utilizado para fiscalizar e regular a atuação dos participantes dessa indústria em território brasileiro.
Antes de mais nada, é importante compreendermos que protocolos e aplicações construídos sobre a tecnologia blockchain são simplesmente produtos e serviços na internet que utilizam os contratos inteligentes (softwares de códigos abertos, autônomos e autoexecutáveis) para executarem funções específicas, como, por exemplo, a criação de tokens (propriedades digitais responsáveis por desenvolver ambientes econômicos interoperáveis na blockchain).
Diante dessa breve análise, como bem suscitado pela CVM em seu parecer, a natureza dessas tecnologias é irrelevante para o enquadramento de seus ativos subjacentes como valores mobiliários. O que determina se um criptoativo poderá ser classificado como valor mobiliário ou não são as conjunturas econômicas relacionadas à sua oferta e distribuição ao público.
Desse modo, a jurisdição da CVM quanto ao mercado de criptoativos se limita aos tokens que forem considerados valores mobiliários para fins de distribuição pública e, obviamente, as prestadoras de serviços de criptoativos que estão emitindo, comercializando, custodiando ou intermediando a comercialização de tais tokens, como as exchanges e tokenizadoras de ativos. Isto posto, a grande função prevista pelo órgão regulador, como previsto na Lei nº 6.385/76, é promover a proteção à poupança popular, combate à lavagem de dinheiro e à corrupção e o controle à evasão fiscal.
Sendo assim, é essencial que os participantes da indústria compreendam a metodologia utilizada para o enquadramento desses ativos como valores mobiliários e, portanto, suas consequências jurídicas e regulatórias. Apenas diante de tal compreensão, empreendedores, desenvolvedores e investidores terão clareza de qual maneira desejam estruturar seus modelos de negócio e como deverá ser o tokenomics da aplicação com a devida segurança jurídica para executarem suas funções.
A este respeito, o conceito de valor mobiliário previsto no inciso IX do artigo 2º da Lei 6.385/76 se inspira na famosa jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos chamada “Howey Test“, muito utilizada pela SEC. De acordo com o entendimento da CVM, para um ativo ser classificado como valor mobiliário, precisa preencher os seguintes requisitos: (i) a existência de um investimento; (ii) a formalização do investimento em um título ou contrato, pouco importando, contudo, a natureza jurídica do instrumento ou do conjunto de instrumentos adotados; (iii) o caráter coletivo do investimento; (iv) o direito, decorrente do investimento, a alguma forma de remuneração; (v) que essa remuneração tenha origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros que não o investidor; e (vi) que os títulos ou contratos sejam objeto de oferta pública.
Diante desse cenário, o Parecer de Orientação nº 40 se direciona aos modelos de negócios na Web 3.0 que ofertam, comercializam ou utilizam tokens que possuem as características acima. Independentemente do objetivo e/ou motivação dos empreendedores que oferecem security tokens, é necessário se adequar às normas aplicáveis e regulamentações da CVM, sob pena de sofrerem stop-order e/ou eventuais multas. Apesar de ter seguido a taxonomia global de “payments tokens“, “utility tokens” e “asset-backed tokens“, dependendo da conjuntura econômica do modelo de negócio, sua aplicabilidade e os direitos a ele associados podem acarretar no enquadramento em mais de uma das classificações mencionadas acima, sendo importante, então, a análise dos casos concretos.
Por conseguinte, o empreendedor e/ou desenvolvedor não pode se prender ao viés de pertencimento em alguma dessas classificações (até porque provavelmente serão aperfeiçoadas ou alteradas de acordo com o avanço tecnológico e regulatório), mas deve observar de maneira imparcial se o seu modelo de negócios envolvendo criptoativos preenche os requisitos de contrato de investimento coletivo. Em especial, os pontos (iv) o direito, decorrente do investimento, a alguma forma de remuneração, (v) que essa remuneração tenha origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros que não o investidor, e (vi) que os títulos ou contratos sejam objeto de oferta pública, merecem uma atenção maior.
Ademais, nos casos de tokens que representam digitalmente algum dos valores mobiliários previstos taxativamente nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei nº 6.385/76 e/ou previstos na Lei nº 14.430/2022 (i.e., certificados de recebíveis em geral), como os derivativos são considerados intrinsecamente como contratos de investimentos coletivos e não dependem de manifestação prévia da CVM. De acordo com o Parecer de Orientação CVM nº 33/05, a CVM “também poderá considerar, para avaliar se a oferta foi dirigida a investidores residentes no Brasil, a utilização da língua portuguesa e a localização física do provedor”, provavelmente se referindo a algumas exchanges onde usuários podem negociar derivativos através da língua portuguesa de Portugal.
Observa-se que a autarquia se baseia no princípio de full and fair disclosure como elemento fundamental de seu regime informacional. Segundo o Parecer, “a concentração inicial da CVM é no sentido de prestigiar a transparência em relação aos criptoativos e assegurar a observância do regime de divulgação de informações“. De acordo com a autarquia, seu viés é de proteção aos token holders e aos investidores do mercado, assegurando o acesso a informações corretas sobre os valores mobiliários comercializados para, assim, investidores realizarem seu investimento.
É evidente, portanto, que a CVM vem adotando uma postura comunicativa e colaborativa com os participantes da indústria de criptoativos, se diferenciando da abordagem escolhida pela SEC nos Estados Unidos, o que é muito bem visto pelo mercado. No entanto, é necessário que a autarquia continue aprimorando seu conhecimento na área para promover regulamentos específicos para as variedades de critpoativos existentes e seus intermediadores, bem como uma abordagem técnica sobre os demais segmentos da Web 3.0, como DeFi, Gaming, Metaverso, Stablecoins, NFTs, privacidade e entre outros. Além disso, no estágio atual do mercado, torna-se inviável o enquadramento de security tokens às regulamentações vigentes. Aplicações e protocolos na Web 3.0 são negócios em estágios iniciais, muitas vezes sem a maturidade e liquidez necessária para se adequar às normas do mercado de capitais, o que bloqueará a entrada de novos participantes na indústria e mitigará o desenvolvimento da Web 3.0 em território brasileiro. É necessário adequar os regulamentos vigentes aos criptoativos e não adequar os criptoativos aos regulamentos vigentes.
Sabemos dos desafios que os criptoativos apresentam ao nosso ordenamento jurídico, principalmente em relação às normas de valores mobiliários. Entretanto, apenas com regulamentação clara e eficiente iremos alcançar o esperado “mainstream“, ou seja, aplicações e protocolos com bilhões de usuários e trilhões de capital investido. Venture capitals, hedge funds e private equities estão apenas esperando esse importante passo para destravar capital dentro do mercado. Nesse sentido, uma oportunidade única se apresenta na história do Brasil: a possibilidade de ser vanguardista em tecnologia e inovação global, o que irá gerar benefícios econômicos e sociais incalculáveis para a nossa sociedade.
A equipe de Bichara e Motta Advogados está acompanhando de perto o desenvolvimento da regulamentação de criptoativos no Brasil, prestando assessoria jurídica aos players do mercado. Mais informações em www.bicharaemotta.com.br.
[1] https://www.sec.gov/litigation/complaints/2022/comp-pr2022-167.pdf – Página 16, Cláusula 69
[1] Advogado responsável pelo departamento de Web3 & Gaming do escritório Bichara e Motta Advogados. Graduado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre (LLM) em Direito Desportivo Internacional pelo Instituto de Derecho y Economía (ISDE) em Madri, Espanha. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD) – Comissão Jovem. Vice-Presidente da Comissão de Esporte e Entretenimento da OAB/RJ – subseção Barra da Tijuca. Membro da Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB/RJ. E-mail: udo.seckelmann@bicharaemotta.com.br
[2] Estagiário do departamento de Web3 & Gaming do escritório Bichara e Motta Advogados. Graduando na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Entusiasta do mercado de criptoativos e fundador da comunidade Canal Valor Investidor. E-mail: pedro.heitor@bicharaemotta.com.br