Warning: Attempt to read property "ID" on null in /home/storage2/4/31/3f/bicharaemotta/public_html/wp-content/themes/bicharamotta/single.php on line 5

O Caso Caster Semenya: Direitos Fundamentais e os Limites da Regulação Esportiva

Juliana Avezum e Sofia Iervolino Almeida

O caso da atleta sul-africana Caster Semenya, bicampeã olímpica nos 800 metros, tornou-se um dos mais emblemáticos da história recente do esporte internacional ao colocar em conflito regulações esportivas e princípios fundamentais de dignidade e igualdade. Semenya possui hiperandrogenismo, condição médica em que o corpo produz níveis naturalmente elevados de hormônios androgênicos, como a testosterona. Em 2018, a World Athletics (antiga IAAF), entidade máxima do atletismo mundial, estabeleceu que mulheres com Diferenças no Desenvolvimento Sexual (em sua sigla em inglês DSD), como é o caso da atleta, estariam proibidas de competir em determinadas provas femininas caso não reduzissem artificialmente seus níveis hormonais, mediante uso contínuo de medicamentos.

A justificativa da entidade é de que tais condições confeririam vantagens físicas consideradas incompatíveis com a categoria feminina, especialmente em provas de média distância. Semenya por sua vez, recusou-se a se submeter a esse tipo de intervenção médica, sustentando que a imposição viola seu direito à saúde, à dignidade, à integridade física e à identidade de gênero. Desde então, a atleta trava uma batalha jurídica contra as restrições impostas.

O primeiro passo foi a interposição de um recurso, ainda em 2018, junto ao Tribunal Arbitral do Esporte (CAS), com sede em Lausanne, na Suíça. Na ação, a atleta questionava a legalidade da norma da World Athletics sob o argumento de que a medida violaria seus direitos fundamentais. Em 2019, o CAS decidiu manter a norma, reconhecendo que, embora a regulação fosse discriminatória, tal discriminação seria justificada diante do objetivo de preservar a equidade competitiva nas provas femininas.

Na sequência, Semenya apresentou novo recurso, desta vez ao Tribunal Federal da Suíça, instância máxima do Poder Judiciário do país. No documento, a atleta solicitava a anulação da decisão arbitral, sustentando que não havia sido garantido um controle judicial adequado dos impactos da norma sobre seus direitos individuais. Em 2020, o Tribunal rejeitou o pedido, entendendo que as federações esportivas possuem autonomia regulatória e que não haveria violação manifesta à ordem pública.

Diante da negativa no âmbito suíço, a defesa da atleta levou o caso ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Em 2021, Semenya apresentou sua contestação ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (em sua sigla em inglês ECtHR), alegando que os procedimentos anteriores haviam desrespeitado garantias fundamentais, como o direito à integridade física, à privacidade, à igualdade de tratamento e ao acesso a um processo justo. Em 2023, uma das Câmaras do ECtHR analisou o caso e decidiu, por maioria, que o Tribunal Suíço não assegurou à atleta uma via judicial efetiva para contestar as normas impostas pela federação.

A decisão foi submetida à instância superior do ECtHR (Grand Chamber), responsável por revisar casos de maior impacto jurídico e institucional. Em julho de 2025, a Corte proferiu decisão definitiva. Por 15 votos a 2, entendeu que a Suíça falhou ao não garantir a Semenya o direito a um julgamento justo, destacando que o Tribunal Federal suíço se limitou a confirmar a decisão arbitral sem realizar uma análise substancial sobre os efeitos da regulação sobre os direitos fundamentais da atleta. O Estado suíço foi condenado ao pagamento de 80 mil euros em despesas processuais, em favor de Semenya. Os demais argumentos relacionados à discriminação não foram julgados.

A decisão da Corte não revoga a norma da World Athletics, que continua em vigor. No entanto, reconhece que, no caso específico de Semenya, houve uma falha processual relevante: a ausência de uma análise judicial aprofundada sobre os efeitos da regra na vida da atleta. Isso reabre a possibilidade de que o caso volte a ser examinado pelo Judiciário suíço, especialmente à luz da necessidade de se garantir mecanismos reais de contestação em situações em que normas esportivas impactam diretamente a saúde, a identidade e a carreira de uma atleta.

O caso Semenya segue mobilizando discussões dentro e fora do esporte. De um lado, o debate sobre a validade cientifica das regras aplicadas a atletas com DSD continua em curso, com questionamentos sobre critérios utilizados para definir vantagens competitivas. De outro, no campo jurídico, a controvérsia evidencia o desafio de assegurar caminhos processuais eficazes para que atletas possam se defender quando confrontados com exigências que ultrapassam aspectos técnicos e interferem diretamente em suas vidas. Trata-se de um episódio que não apenas questiona os limites entre ciência, corpo e rendimento esportivo, mas também provoca reflexões sobre a estrutura de garantias nos sistemas de justiça aplicados ao esporte de alto rendimento.

Para mais informações sobre esporte e entretenimento, siga as nossas redes sociais em @bicharaemotta para receber informes e notícias em primeira mão!