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QUEM SÃO OS “TERCEIROS” DO TESTE DO INCISO NONO?

Análise do Requisito de “Esforços de Terceiros” Previsto na Definição de Contrato de Investimento Coletivo

Pedro Heitor

Raphael Cvaigman

Desde a decisão paradigmática da Suprema Corte norte-americana no caso SEC v. W.J. Howey Co. (1946), consagrou-se na jurisprudência norte-americana um conjunto de critérios destinados a aferir quando determinado bem ou negócio jurídico deve ser qualificado como valor mobiliário, por meio da figura do investment contract[1], de modo que o atendimento a tais critérios atrai, por conseguinte, a competência regulatória da U.S Securities and Exchange Comission (SEC).

Esse método de verificação, posteriormente consolidado pela doutrina e pela jurisprudência, passou a ser denominado Howey Test e se estrutura a partir de quatro elementos fundamentais: (i) investimento em dinheiro – investment of money; (ii) em um empreendimento comum – common enterprise; (iii) com expectativa de lucros – expectation of profits; (iv) a serem obtidos preponderantemente dos esforços do proponente ou de terceiros – solely from the efforts of others.

É justamente nesse último requisito que reside uma das maiores complexidades do teste, pois o conceito de “esforços de terceiros” se tornou um dos aspectos centrais para a caracterização de investment contracts. Ao ser incorporado e adaptado pelo ordenamento jurídico brasileiro, o que ocorreu através da introdução do instituto do contrato de investimento coletivo (CIC) [2], positivado no artigo 2º, inciso IX, da Lei nº 6.385/1976, deu-se origem ao chamado Subsection Nine Test (“Teste do Inciso Nono”), e provocou, de imediato, a seguinte indagação pela comunidade jurídica brasileira: quem são, afinal, esses “terceiros” cuja atuação é juridicamente relevante para a configuração de um valor mobiliário?

A resposta a essa questão, entretanto, revela-se cada vez mais desafiadora diante da velocidade com que a iniciativa privada desenvolve modelos de negócios inovadores — dinamicidade essa que, no universo dos criptoativos, é intensificada por sua natureza multifacetada e pela descentralização dos livros-razão distribuídos globalmente nos quais se assentam.

Essa realidade inaugura obstáculos inéditos à tarefa de identificar os sujeitos cujos esforços podem ser juridicamente qualificados como determinantes para a geração de expectativa de retorno aos investidores, sobretudo em ambientes descentralizados nos quais desenvolvedores, emissores, promotores, intermediários e até comunidades inteiras compartilham funções que, tradicionalmente, eram atribuídas a um ente centralizado.

Para melhor compreender a dimensão desses desafios contemporâneos, mostra-se indispensável resgatar as discussões e obstáculos enfrentados pela jurisprudência norte-americana que, ao se debruçar nesses contornos do Howey Test, passou a delimitar o alcance do seu último requisito — de “esforços do proponente ou de terceiros”. Nesse contexto, destaca-se o precedente Noa v. Key Futures, Inc. (1981)[3], que, em síntese, tratou da oferta de um contrato mediante o qual investidores adquiriram barras de prata da sociedade Key Futures, Inc., que permanecia responsável por sua custódia de forma gratuita, outorgando aos adquirentes uma opção de venda em favor da própria empresa.

Na ocasião, a Corte entendeu que os contratos em questão não configuravam investment contracts, em razão da ausência de esforços gerenciais essenciais (“undeniably significant efforts”). O retorno financeiro derivaria tão somente das flutuações do mercado de prata, alheias à atuação da sociedade contratante ou de quaisquer terceiros. Dessa compreensão, infere-se que o escopo do vocábulo “others” – traduzido no contexto jurídico brasileiro como “terceiros” — no âmbito do Howey Test está diretamente relacionado com o vínculo desses agentes em relação ao empreendimento comum, precisamente, (i) se a sua ingerência e/ou influência é efetivamente capaz de determinar o sucesso ou o fracasso do projeto; e (ii) desde que o retorno financeiro não advenha de circunstâncias estranhas e fora do controle dos entes integrantes da relação de investimento.

A lógica subjacente a esse entendimento também se manifesta no contexto da regulação brasileira. Um exemplo emblemático foi o episódio relativo à oferta pública de tokens promovida pelo Club de Regatas Vasco da Gama, que conferiu aos adquirentes os direitos econômicos vinculados ao mecanismo de solidariedade da FIFA, gerando benefícios a partir de cada transferência de atletas formados pelo clube, seja por empréstimo ou permanentemente.

 A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), entretanto, deliberou pela não caracterização do tokencomo valor mobiliário, ao considerar que eventual ganho dos investidores dependeria de atores completamente estranhos à operação de tokenização. Isso porque os elementos centrais da transação de compra e venda dos direitos federativos, — atleta, comprador e vendedor — não mantinham qualquer vínculo com o emissor do token e/ou o clube formador, de modo que não seria possível atribuir a estes qualquer ingerência sobre as decisões determinantes para eventuais rendimentos futuro dos investidores.

Em consonância com a jurisprudência norte-americana, parece plasmado que o termo “terceiros” deve ser reservado às entidades cuja atuação exerça ingerência ou influência direta sobre o empreendimento comum, de modo que a lucratividade — ou perda — dos investidores seja atribuível a seus esforços. Ao revés, sempre que a rentabilidade decorrer de fatores externos e alheios ao domínio das partes integrantes da relação de investimento, em princípio, não se configurará contrato de investimento coletivo.

Sob uma perspectiva teleológica, a previsão dos “terceiros” no Teste do Inciso Nono busca evitar que o instituto seja esvaziado por formalismo excessivo: a expectativa de lucro dos investidores pode decorrer não apenas da atuação direta do emissor, mas também de afiliados, parceiros ou colaboradores  vinculados ao empreendimento comum.

Nessa esteira, ainda que o Teste do Inciso Nono aparente objetividade, a miríade de arranjos possíveis no ecossistema de criptoativos evidencia nuances que frequentemente escapam à subsunção silogística. Daí a necessidade de recorrer a análises casuísticas, conduzidas à luz da estrutura econômica (tokenomics) de cada projeto, com suporte especializado para a adequada compreensão de suas repercussões no mercado de capitais.

A Bichara e Motta Advogados segue acompanhando de perto a interseção entre a regulamentação de valores mobiliários com os criptoativos, prestando assessoria jurídica estratégica para auxiliar os players do mercado a navegarem pelo dinâmico ambiente jurídico. Mais informações em www.bicharaemotta.com.br.

[1] “Securities Act, de 1933. “SEC. 2 (a) DEFINITIONS. – When used in this title, unless the context otherwise requires – (1) The  term  “security” means any  note,  stock,  treasury  stock, bond,  debenture, evidence  of  indebtedness, certificate of  interest or participation  in  any  profit-sharing agreement, collateral-trust certificate,  preorganization  certificate  or subscription,  transferable  share, investment  contract,  voting-trust  certificate,  certificate  of  interest  in property,  tangible  or  intangible,  or,  in  general,  any  instrument  commonly  known  as a security,  or  any  certificate  of interest  or participation  in,  temporary  or  interim  certificate  for,  receipt  for,  or  warrantor  right  to  subscribe  to  or  purchase, any  of  the  foregoing.” (grifos nossos)

[2] PARECER DE ORIENTAÇÃO Nº 40, DE 11 DE OUTUBRO DE 2022: (i) “Investimento: aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica; (ii) Formalização: título ou contrato que resulta da relação entre investidor e ofertante, independentemente de sua natureza jurídica ou forma específica; (iii) Caráter coletivo do investimento: “o investimento deve ser coletivo, isto é, vários investidores devem realizar um investimento em comum”; (iv) Expectativa de benefício econômico: seja por direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, decorrente do sucesso da atividade referida no item (v) a seguir; (v) Esforço de empreendedor ou de terceiros: benefício econômico resulta da atuação preponderante de terceiro que não o investidor; e (vi) Oferta pública: esforço de captação de recursos junto à poupança popular.” (grifos nossos)

[3] https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/F2/638/77/211442/